segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

"Berrei para o meu compadre: 'Fujam!'. Mas já vinham as pedras a saltar".

Para salvar um homem, Fábio deixou a água entrar. Carlos fez a casa no trajecto das enxurradas. Para uns, a tragédia foi obra humana; para outros, de Deus.

Quando a onda rebentou, trazia água, lama, lixo, pedras, paus e um homem aos trambolhões. Não foi um caudal a crescer: foi de repente. A vaga gigante a afunilar pelo beco estreito, como se se abrisse a comporta de uma barragem. Fábio bem viu o homem, a rebolar pela Rua dos Açougues, desde a ribeira principal, que corre ao longo da Rua Direita. "Tinha mais de 60 anos, vinha todo embrulhado, eu saltei para aquele lado e estendi-lhe a mão." Fábio Alexandre Abreu da Silva, de 31 anos, agarrou no homem, subtraindo-o à força da corrente, ao mesmo tempo que a lama lhe entrava pela pastelaria Meia Lua, destruindo tudo.

A chuva estava a aumentar de intensidade desde há horas, mas não havia cheia na rua. Rogério Fernandes da Silva, de 54 anos, pai de Fábio e proprietário do café, viu que os vizinhos fechavam as lojas e veio avisar o filho. Foi tarde. A porta estava aberta quando a onda chegou. Pedregulhos do tamanho de abóboras saltaram para o interior do estabelecimento, um tronco de três metros esbarrou no degrau da esplanada, avalanchas de lama empanturraram a cozinha. Tudo em segundos. "Estou aqui há 11 anos, nunca vi nada assim. A onda tinha mais de dois metros de altura. Foi cerca das 10h30 da manhã. A ribeira rebentou. A onda veio de lá, cheia de pedras e paus, por causa das obras que andam a fazer lá em cima. Deitam tudo para a ribeira. Agora todo o lixo veio parar aqui. E eu tinha a porta aberta."

Fábio pensou rápido. Fechava a porta ou agarrava o homem. Talvez até já viesse morto. Mas ainda assim! Calculou bem o salto. Segurou-lhe o braço e acto contínuo sacou um puxão forte em direcção ao degrau. "Depois esperei uma aberta e atirei-me para aquele lado, com o homem. Ele mal se apanhou de pé desatou a correr. Estava vivo. Desatou a correr por ali."

Se a ribeira não tivesse transbordado, a Rua dos Açougues nunca ficaria no trajecto das enxurradas. "Junto à cidade, as ribeiras estão demasiado estreitas", diz Carlos Alberto Diniz do Nascimento, de 43 anos. "Nos arredores, onde está a minha casa, quem faz as ribeiras é o poder de Deus. Na cidade, vão construindo muros de cimento, cada vez mais estreitos, para construírem mais casas dos lados."

E veio a segunda enxurrada.
Ou seja: se na cidade foi a ambição humana que abriu o caminho da destruição, já ali, no bairro de Santo António, foi o próprio Deus que preparou tudo. Não é um bom sítio, reconhece Carlos Alberto. "Eu sabia que era perigoso. Mas a gente não pode escolher o sítio, não é?"

A casa onde Carlos Alberto vivia com a família é um anexo da casa do seu compadre, a quem ele pagava com trabalho. "Não é bem uma renda: eu ajudo-o na horta." Era um T1. No único quarto dormiam todos: pai, mãe e os seis filhos, desde a Ana Sofia, de 16 anos, aos gémeos, de 3. "Eram 7 filhos, mas uma já saiu de casa. Não casou, mas vive com um rapaz", explica Carlos. "Não, a mais velha é a Ana Sofia. A que saiu foi a segunda mais velha": a Telma, de 15 anos, grávida de 4 meses. Vive agora em casa do Fábio e da mãe dele. O bebé vai chamar-se Filipa Micaela.

Nem o Fábio nem a Telma trabalham. Também não estudam. Ele porque foi expulso da escola, depois de ter partido uma cadeira na cabeça da professora; ela porque, como engravidou, na explicação do companheiro, "não compensava": "Andar sempre a ir à casa de banho, de cinco em cinco minutos, com enjoos... Era melhor desistir".

São ambos contra o aborto. "Toda a família é", diz o Fábio. "O nosso sonho é ter uma casa só para nós", diz a Telma, loira e sorridente.

"A primeira derrocada passou rente à parede", conta Carlos Alberto, pedreiro de profissão. "Trazia água com terra, troncos de eucalipto e bocados de uma casa que ruiu um pouco mais acima." Eram entre as 9 e as 10 da manhã. "Assustei-me." A ribeira passa mesmo ali ao lado. Quando transborda, vai para cima da casa, construída no declive, mas nunca daquela maneira. "Chamei a família. Mulher e os 6 filhos. Disse: "Saiam todos!" Viemos cá para fora, mas ficámos presos junto à horta." Os destroços tinham obstruído o caminho. "Estava muita chuva e vento, entrámos na casa do vizinho, que é o meu compadre. Pusemo-nos a picar massa, para fazer uma barreira." Mas chegou a segunda enxurrada, muito mais forte. "Berrei para o meu compadre: "Fujam!" Mas já vinham as pedras a saltar. A minha vizinha levou então com um bocado da casa do filho dela, e morreu. O meu compadre também apanhou com uma pedra e caiu no chão." A derrocada não parava, e não conseguiam fugir. "A gente encostou-se ali todos juntinhos." Até chegarem os bombeiros e a chuva "limpar um pouco do lameiro". Então Carlos agiu. "Agarrei no meu compadre, puxei-o dali para fora. Fui arrastando. Até que os bombeiros puderam ajudar. O meu compadre está agora nos Cuidados Intensivos."

Quartel acolhe desalojados.
Carlos e a família refugiaram-se no Centro Cívico de Santo António. Dali foram levados para o quartel do Regimento de Guarnição 3, onde cerca de 70 desalojados (quase todos vêm de bairros pobres, 20 por cento são crianças, a mais nova tem 15 dias) estão a dormir nas casernas. Alguns mesmo na messe de Oficiais, que foram para casa, para ceder os lugares, diz o sargento-chefe C. Becker. "Temos 15 a 20 equipas no terreno, com 5 ou 6 elementos cada, a colaborar com a Protecção Civil", explica Becker. "Oitenta por cento de toda a unidade está envolvida na operação."

Na cidade, a chuva parou e as pessoas vieram ao centro ver os estragos, como se fosse um espectáculo que um dia descreverão aos netos. Há muita gente, mas um estranho silêncio. Há zonas alagadas e outras em que a lama solidificou, deixando automóveis incrustados até ao tejadilho à maneira dos fósseis, em posições desgovernadas de quem tivesse participado numa dança louca. Dir-se-ia que andou tudo a voar.

Nas ribeiras ainda corre uma água castanha, rápida e rumorejante. Um som estridente, semelhante a uma gargalhada. Ao fundo, o mar espera, cúmplice. De certos sítios, agora calmos, ninguém se aproxima, com medo, como se ali tivesse rugido uma fera.

O Largo do Pelourinho ainda está alagado e da esplanada de um café apenas emergem os tampos das mesas, onde foi servido um sinistro repasto de pedras e lama. A um nível mais elevado fica a Praça da Autonomia, obra de regime, cercada de água por todos os lados.

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