Melene Samedi estava a comprar sapatos na Baixa de Port au Prince. A terra tremeu e uma das suas pernas ficou presa num pedaço de cimento que o sismo arrancou de um edifício, fracturando-lhe o osso. Até foi levada depressa para o hospital, mas já era tarde e os médicos amputaram-lhe a perna abaixo do joelho.
A maioria das amputações tem sido feita no Hospital da Universidade, o principal da capital. Cirurgiões ouvidos pelo jornal "Guardian" acreditam que o tremor de terra vai deixar até 200 mil pessoas sem pelo menos um dos membros. Entre sábado e quarta-feira, a Handicap International contabilizou 400 amputações só em Port au Prince, estimando que os números vão aumentar "drasticamente" .
O sismo da semana passada no Haiti vai criar uma geração de amputados. Os números fazem pensar em países com campos de minas antipessoais deixados por guerras longas e munições de bombas de fragmentação a parecerem brinquedos por explodir.
Não, aqui houve um sismo. Mas foram muitos os que ficaram debaixo dos escombros por demasiado tempo, os que estiveram sem tratamento, os que foram tratados à pressa e voltaram sépticos. Ainda não acabou.
Em sismos há sempre "muitos ferimentos de membros porque é com eles que as pessoas protegem a cabeça e o tronco", explicou-nos Stephanie Stuart, directora da Handicap International no Reino Unido. "Aqui está a ser extremamente difícil levar o tratamento até às pessoas e, ao mesmo tempo, é uma área com grande densidade populacional. Muitas amputações não teriam de acontecer. Se as pessoas fossem vistas a tempo, as opções de tratamento seriam outras. Para além da densidade populacional, maior do que na zona do terramoto de 2005 no Paquistão ou no de 2008 na China, que não visaram as capitais, a diferença é que as estruturas para tratar desapareceram completamente e tiveram de ser restabelecidas", disse-nos numa conversa ao telefone.
Stephanie Stuart estima que os números vão subir porque "muitas pessoas com ferimentos menos graves não foram aos hospitais, por saberem que estão cheios ou pelas suas obrigações, por terem de ficar com os filhos, por exemplo, e quando forem será tarde" para evitar a amputação.
"Em condições destas, descritas como uma zona de guerra, as pessoas estão a ser devolvidas à rua ou a campos improvisados onde condições de higiene péssimas conduzem a infecções e a gangrena", escreveu a organização de Stuart num comunicado.
Os Médicos Sem Fronteiras dizem que a última vez que se viram tantas amputações foi na Guerra da Crimeia (1853-1856).
Feridas com larvas.
Muitas são feitas em menos de nada e sem condições. "Fiz a minha primeira amputação com três fórceps, cinco tesouras e um bisturi, sem água e só com uma lanterna para iluminar a ferida", contou à AFP Jacques Lorblanches, dos Médicos Sem Fronteiras. Dois dias depois de chegar ao Haiti, este médico experiente já tinha perdido a conta ao número de amputações que realizou. "Nunca vi nada assim - feridas infectadas cheias de larvas."
"Temos muitas pessoas que chegam com feridas que não foram tapadas e infectaram. A única opção é amputar", disse à Reuters Roberto Feliz, um anestesista que está a trabalhar num hospital improvisado da ONU. "Tivemos de comprar uma serra no mercado para continuar a amputar. Estamos a correr contra o tempo", disse num comunicado Lois de Filippi, do Hospital Choscal, gerido pelos MSF.
Face à dimensão da tragédia, o futuro parece ainda mais distante com uma perna ou um braço a menos. "Não tenho trabalho nem casa. E agora isto", foi o lamento ouvido pelo "Guardian" ao marido de Melene Samedi, Schiller Polycarpe, de 27 anos.
É por isso que a Handicap International tenta reunir equipas capazes de prepararem as pessoas para viver sem os membros que agora perdem. "A amputação salvou-lhes a vida", diz Stuart. "Agora é preciso encontrar-lhe fisioterapeutas, técnicos para as aconselharem, é preciso saber em que condições estão a manter as feridas para poderem receber próteses, quem as ajude a aprender a andar depois das próteses, a fazer o tratamento pós-amputação, que é muito traumático."
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