Cristina conduz há 21 anos sem documentos. Três anos na prisão não serviram de lição e hoje teve a primeira sessão do novo julgamento.
O velho Hyundai vai embalado pelas ruas de Coimbra, um pouco acima da velocidade permitida por lei. Cristina Araújo gosta de acelerar mas não se esquece de meter o pisca nos cruzamentos ou de parar nos sinais de Stop. "Espero que não haja polícia para estes lados. Eles já conhecem bem o carro".
De início, a sensação de viajar ao lado dela é como a dos minutos que antecedem um salto no escuro: o estômago embrulha-se quando nos lembramos de que a vendedora ambulante, de 48 anos, conduz sem documentos há 21 e costuma atingir os 200 km/h nas auto-estradas. Depressa nos apercebemos que o salto não passa, afinal, de um pulo de criança. Ela não atropela ninguém na passadeira nem se atira para cima das outras viaturas. "Guio melhor do que muitos encartados", vangloria-se quando estaciona, à primeira, o carro em frente à escola de condução.
Ironia das ironias. Cristina faz diariamente o trajecto de 80 quilómetros (ida e volta) entre a aldeia de Tentúgal, onde vive, e o local onde aprende as regras do trânsito. "Trago uma manta na bagageira, caso seja apanhada. Assim, posso dormir no banco de trás."
É a décima vez que tenta a sorte no exame de código. "Não me ajeito com o computador. Fico sempre nervosa e falho nas perguntas mais básicas. Mas tenho a certeza de que vou passar à primeira no exame de condução", justifica-se.
Sentença lida na 5ª feira
As repetidas reprovações não a impedem de pegar no Hyundai e fazer-se à estrada, sempre que lhe apetece. "Há duas coisas de que não prescindo: do carro e do telemóvel". A teimosia tem-lhe dado amargos de boca. A 10 de Agosto foi detida pela 37ª vez pela polícia, por conduzir sem os documentos quando ia para mais uma aula de código. "Tenho tido azar", diz numa voz sumida. Hoje foi julgada no Tribunal de Coimbra, mas a sentença só será lida na 5ª feira. Até o seu advogado se mostra pessimista com o veredicto do juiz. "É mais provável ser presa do que punida com trabalho comunitário", vaticina Filipe Figueiredo.
Cristina encolhe os ombros com as ameaças de cadeia. Talvez se esteja a fazer de dura, mas, a confirmar-se a sentença, não será a sua primeira vez numa cela. Entre 2005 e 2008, esteve presa, por culpa do mesmo crime: conduzir sem documentos. A pena máxima para estes casos é de dois anos de prisão. Ela apanhou três, por cúmulo jurídico. "O juiz estava farto de me ver. Acusou-me de estar a gozar com as autoridades e castigou-me." A única queixa que guarda da prisão é que a poderiam ter autorizado a fazer os exames. "Hoje, não circulava ilegalmente."
Quando saiu do estabelecimento prisional do Porto, a primeira coisa que fez foi pegar no carro e viajar até Lisboa, com o pé pesado no acelerador, para matar as saudades da família. E voltou a trabalhar como vendedora ambulante, uma actividade que a obriga a conduzir. "Tinha de me fazer à vida. Como poderia ir buscar a fruta à Macro e vendê-la nas feiras? Montada numa bicicleta?", ironiza.
Aos 25 anos, iniciou a odisseia ao volante de um Mini. "Aprendi a guiar no mato." Não passou muito tempo até ser apanhada, no asfalto. "Estava a tentar vender o terceiro quilo de fruta, no Largo da Praça Velha, em Coimbra, sem licença. Recusei-me a pagar a multa. A partir daí, a polícia passou a conhecer-me bem." Aos 30, estreou-se no tribunal de Coimbra. E também os magistrados se familiarizaram com aquela senhora de língua afiada. "Já perdi a conta das vezes em que fui interrogada por polícias, advogados e juízes."
Mãe de três filhos, Cristina vive sem marido, depois de passar por dois divórcios e uma viuvez. Os últimos meses têm sido aziagos: ficou sem ocupação, sem casa e sem dinheiro. E o subsídio do Estado secou. "Tinha uma rulote onde vendia cafés, sumos e bolos. Não me renovaram a licença depois de sair da prisão. Como será o meu ganha-pão?", pergunta enquanto toca o telemóvel. Olha para o visor mas não atende. "É o vendedor do stand. Ainda lhe devo 1300 euros."
Antes do Hyundai (e depois do Mini) o seu carro era um Toyota, também em segunda mão. Chegou a mudar-lhe a cor, para a polícia não o reconhecer. Sem grande êxito. "A maior parte das vezes em que fui caçada, estava a vender fruta na estrada. Também já me mandaram parar em operações Stop. Mas nunca fui apanhada em transgressões ou acidentes." Cristina esforça-se por fazer as contas ao dinheiro que já gastou em multas e despesas processuais: "Para cima de cinco mil euros", diz antes de meter a chave na ignição e fazer-se, de novo, à estrada.
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