sábado, 9 de janeiro de 2010

Revolta em surdina no PS no dia do "sim" ao casamento gay.

O “dia histórico” em que a Assembleia da República (AR) aprovou a proposta de legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo foi ensombrado pela permanência de mal-estar na bancada do PS e pelas interrogações em torno da eventual inconstitucionalidade sobre a exclusão da adopção.

Durante as votações, os socialistas João Soares e Catarina Marcelino surpreenderam a bancada do PS, votando favoravelmente os projectos de lei do BE e do PEV, que previam a adopção por casais homossexuais. Estes deputados juntaram-se assim aos casos de excepção à disciplina de voto imposta pelo secretário-geral do PS – Sérgio Sousa Pinto, Duarte Cordeiro e Jamila Madeira – e aos independentes Miguel Vale de Almeida, João Galamba e Inês de Medeiros.

A esquerda parlamentar (PS, BE, Verdes e PCP) venceu a votação, contra a reprovação das bancadas do PSD, do CDS (Teresa Caeiro, João Rebelo e Assunção Cristas apresentaram declarações de voto, justificando o voto contra pela vinculação ao partido e pela manutenção de uma “posição homogénea” do grupo) e das duas parlamentares independentes eleitas pelo PS, Maria do Rosário Carneiro e Teresa Venda. Sete deputados do PSD optaram pela abstenção e 12 socialistas, entre eles Marques Júnior e Jorge Strecht, vão entregar declarações de voto.

Esta profusão de declarações de voto, ainda mais numerosas nos projectos do BE e do PEV, foi interpretada internamente como uma manifestação de desagrado pela forma como o processo foi gerido, impedindo a liberdade de voto – como queria Francisco Assis, líder parlamentar, e que José Sócrates travou.

Este desagrado acentuou-se com a surpresa dos votos de João Soares e de Catarina Marcelino nos projectos do BE e do PEV. Apenas Assis, encarregado por Sócrates de gerir este dossier, sabia. Ao PÚBLICO Soares afirmou que não pediu “nada a ninguém”, limitando-se a votar “em inteira liberdade e em consonância com aquilo que sempre [pensou] sobre a matéria”. Marcelino, por seu lado, assumiu ter pedido liberdade de voto a Assis e sublinhou que a sua iniciativa não foi uma surpresa: “Votei em consonância com aquilo que foi a decisão do líder parlamentar.”

Divisões na bancada do CDS.
Apesar de chumbados, os projectos do BE e do PEV receberam do PSD um voto favorável (José Eduardo Martins) e uma abstenção (Pedro Duarte). E recolheram ainda 14 declarações de voto do PS.

Também o projecto de lei do PSD de união civil registada foi rejeitado pela esquerda. Mas a votação não deixou de produzir algum espanto: três deputados sociais-democratas abstiveram-se; e Pacheco Pereira esteve sozinho na reprovação da lei da sua própria bancada, que tinha dado liberdade de voto. “Sou contra qualquer forma de engenharia social feita a partir do Estado”, explicou. A iniciativa do PSD dividiu os deputados centristas, graças à liberdade de voto. Só dois (Hélder Amaral e Abel Baptista) votaram contra, 11 votaram a favor (entre eles Teresa Caeiro, João Rebelo, e Michael Seufert) e oito abstiveram-se.

Entre as abstenções contam-se a do próprio líder da bancada, Pedro Mota Soares, que apresentará em conjunto com Telmo Correia uma declaração de voto. “Não discordo do princípio da união civil registada, mas a lei tem erros que são difíceis de ultrapassar”, justificou Mota Soares.

Sócrates não responde.
Apesar dos apelos de Assis e de Sócrates para se valorizar o que unia a esquerda (“esta é uma lei que se destina a unir, não a dividir a sociedade”, frisou Sócrates), o BE, o PEV e até o CDS não desarmaram com a adopção e a eventual inconstitucionalidade da proposta governamental. Sócrates ignorou ostensivamente o assunto, apesar das insistentes perguntas.

Optou por dar sempre a mesma resposta: distinguiu o casamento gay da adopção e lembrou que o compromisso eleitoral do PS se limitava apenas à primeira proposta. José Manuel Pureza, líder da bancada do BE, que acusou o Governo de acabar com uma discriminação e criar outra, perguntou mesmo se a lei não seria um convite aos futuros casais para se divorciarem na eventualidade de quererem adoptar uma criança.

Este foi um dos momentos mais vivos da discussão, na qual o PCP se destacou por uma atitude discreta. O bulício aconteceu também na troca de palavras entre Teresa Morais, do PSD, e o socialista Duarte Cordeiro. Este classificou o projecto social-democrata como “discriminatório” e “juridicamente aberrante”. “Não resolvem nenhum problema de desigualdade, acentuam a homofobia. Vocês estão no século XX”, lançou. A refutação de Teresa Morais não se fez esperar. Mas a deputada foi breve: classificou de “descontrolado” o tom utilizado por Cordeiro e ainda lhe apontou “falta de estudos”.

A intervenção de Miguel Vale de Almeida era um dos momentos mais aguardados. O seu discurso, centrado na defesa dos direitos humanos e na importância do casamento gay enquanto “gesto emancipatório”, valeu-lhe a maior ovação. Num registo pedagógico, o único deputado assumidamente gay terminou notando que o arco-íris da bandeira do movimento LGBT “será também o símbolo da nossa República”.

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